Palestra ministrada para evento da Associação Brasileira de Direito Tributário - ABDRADT e disponibilizada na Revista Internacional de Direito Tributário (julho/dezembro de 2008).
O tema deste congresso é muito oportuno, pois abre espaço para discutir temas de grande interesse para aqueles que se ocupam da tributação em sua face mais concreta, pragmática. Como sempre alerta o Prof. Paulo de Barros Carvalho, encontros como este servem à compreensão técnica, mas, com muito mais intensidade, às reivindicações de ordem política. E é justamente essa a estratégia que escolhi para enfrentar o tema posto aos meus cuidados: estudar o tema das “certidões de regularidade fiscal” sob óptica da técnica jurídica, ilustrado sua relevância com dados de ordem política e social.
Todos os senhores, que lidam com questões relativas ao direito empresarial como um todo e o tributário de forma especial, têm conhecimento das inúmeras dificuldades que têm sido levantadas à obtenção das chamadas CNDs. O efeito concreto desta dificuldade é o perecimento de direitos dos contribuintes que precisam contratar com o poder público ou demonstrar sua regularidade financeira e econômica nas relações com particulares. Houve avanços, é verdade, mas o número de empresas que permanecem sem este documento é muito grande, projetando prejuízos das mais diversas naturezas, não só na esfera privada, mas - por que não dizê-lo? - ao próprio Poder Público que se vê, em muitas circunstâncias, privado da possibilidade de honrar seus compromissos e contratar empresas que ofereceriam os melhores serviços, pelos melhores preços, se tivessem CND.
Dentro de um congresso que trabalha com proporcionalidade, e tomando “proporcionalidade” como a trilogia de valores a que alude Alexy (necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito), nada mais interessante do que falar de um tema extremamente pragmático, presente no dia-a-dia de todos, qual seja: o conjunto de obstáculos impostos à expedição de certidões negativas de débito, as conhecidas CNDs.
Diante da quantidade de problemas que o tema das certidões negativas de débito acabou gerando para tantas empresas no Brasil, ensejou substancioso estudo sobre suas principais causas. Tive a felicidade de participar como membro do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários, acompanhando o que estava sendo feito e observando os dados que estavam sendo levantados.
Dentre as informações mais interessantes deste estudo podemos destacar que: 92,5% das empresas brasileiras entendem ter problemas com competitividade por conta das certidões negativas de débito. Até 2 ou 3 anos atrás, das 38 maiores empresas que têm ações negociadas na bolsa de valores, quase nenhuma possuía CND, apesar de todas terem Certificados ISO 9001, ISSO 14.000, além de atenderem a todos os requisitos nacionais e internacionais para ter ações negociadas em bolsa.
Há, também, nesse estudo uma informação que foi para mim estarrecedora: enquanto a tributação no Brasil gira em torno de 36 a 38% do nosso PIB, o custo indireto com o cumprimento de obrigações tributárias chega a 5,85% do mesmo PIB! Boa parte da minha atividade como advogado é justamente dizer como deve ser efetuado o pagamento dos tributos; e não como conseguir maneiras para que a empresa pague menos tributos. Estudar para pagar menos se tornou um luxo diante da complexidade do nosso sistema tributário.
Há, também, muitos outros dados como, por exemplo, o índice de insatisfação de cada setor da atividade econômica com este tema. Mas isso foi há dois anos; de lá para cá, muita coisa aconteceu. Mas daí vem a pergunta: qual é a origem desses problemas relativos à CND? Tanto erros do contribuinte como erros da Fazenda. E dentro dos erros da Fazenda temos os erros de programa, por conta da alta informatização – que é muito louvável e que trouxe tantos benefícios. Mas não se faz omelete sem quebrar os ovos, e os ovos, no caso, foram determinados tipos de crédito que não estavam previstos no programa. Também existem muitos erros por parte do contribuinte que, por exemplo, registra um centavo a mais ou a menos, um número a mais ou a menos, o que é suficiente para que não se relacione o DARF pago com o débito declarado, fazendo surgir, assim, o débito em aberto.
No período em que o estudo foi realizado, as empresas mostravam que, em alguns setores, existia uma média de 5 a 10 funcionários contratados tão-somente para cuidar da obtenção de CND’s. Havia uma instituição bancária, por exemplo, que possuía mais funcionários cuidando de CND – sem incluir advogados externos, advogados internos, paralegais, office-boys etc – do que diretores, do que pessoal trabalhando no operacional. Como se vê, o custo indireto da tributação acaba sendo extremamente elevado. E, em termos objetivos, o que gerava esse problema eram erros do contribuinte, erros da Fazenda e erros de programação, de maneira geral.
Só que esses erros de que estamos falando eram agravados por algumas circunstâncias. Em primeiro lugar, a pluralidade de certidões: certidões da Receita Federal, da Procuradoria e do INSS, quando é tendência hoje em dia exigir-se uma certidão unificada, que permite sintetizar o trabalho do contribuinte na sua obtenção. Segundo, o fato de as grandes empresas não saberem da existência de débitos em seu nome. O contribuinte, antes de entrar com o pedido de CND, retirava um extrato de sua conta corrente para verificar se tinha algum problema; em caso positivo, ingressava com um Mandado de Segurança para demonstrar que os débitos eram insubsistentes. Entretanto, no dia seguinte, a Procuradoria juntava uma nova conta corrente, informando que os débitos não era aqueles e que, por isso, não existia mais direito líquido e certo e, como não havia espaço para dilação probatória, perdia-se a ação.
Outra circunstância surreal: algumas dessas empresas, pesos-pesados do nosso PIB, tinham problemas para conseguir CND, entre outras coisas, por possuírem débitos no valor de 1, 2, 3, 4 reais. Todavia, não se pode fazer um DARF para pagamento de valores inferiores a R$ 10,00. Então, pelo simples fato de não ser possível efetuar o pagamento do débito, a empresa continuava sem possibilidade de obter CND, cuja conseqüência imediata era a impossibilidade de participar de licitações ou conseguir contratos de financiamento com o poder público... Muitas empresas estatais exigem CND não só para celebrar o contrato como para realizar o pagamento depois do contrato feito. Ou seja, analisa-se hoje a regularidade fiscal do sujeito também para, após a realização do serviço, pagar a contraprestação avençada. E, em muitas situações, o que acaba ocorrendo é que as empresas não recebem o pagamento, apesar de terem prestado o serviço e de terem saúde financeira para contratar.
Então, o cenário aqui, conquanto não tenha a envergadura teórica de outros temas, acaba trazendo repercussões concretas e práticas extremamente nocivas à sociedade, seja pelo custo, seja pelos demais problemas indiretos que ela acaba gerando.
Outro problema muito importante: para comprovar que os débitos em conta corrente estavam com exigibilidade suspensa por decisão judicial é necessário uma certidão de objeto e pé, cuja confecção demora, em média, uns 15 dias, tempo mais do que necessário para multiplicar muitas vezes os débitos que apareciam na conta corrente.
Quem trabalha com Direito Societário, além de Tributário, sabe que os últimos 20 anos foram marcados por um intenso processo de incorporação de empresas, de fusões de empreendimentos etc. O perfil da nossa economia mudou bastante e algumas empresas são fruto da aquisição de 5, 6, 7 outras. Então imagine o que é multiplicar um contexto já confuso, difícil de ser resolvido, por 5, 6, 7, justamente em razão da aquisição de outras empresas.
Houve uma época em São Paulo que, em média, eram propostos 60 mandados de segurança por dia tratando única e exclusivamente de CND. Em face disso, foi articulada uma pesquisa que acabou sinalizando, de maneira muito concreta e consistente, algumas medidas que, se tomadas imediatamente, poderiam facilitar muitíssimo a solução dos problemas para obter certidões negativas de débitos. Primeiro seria necessário simplificar o complexo de incidências tributárias, mas isso demandaria uma reforma estrutural do sistema vigente. Entretanto, um aumento do âmbito de abrangência do Simples já ampliou muitíssimo o número de empresas que têm uma forma de arrecadação simplificada, facilitando, assim, a obtenção de CNDs. Além disso, foi previsto um prazo de 30 dias para, uma vez sendo percebida a existência de qualquer irregularidade e protocolado o pedido de regularização, fazer com que os débitos ficassem congelados por 30 dias para que se conseguisse a expedição das certidões. Esta foi uma providência reivindicada pela classe empresarial e atendida pela Receita Federal.
Outra providência foi a unificação das certidões da Procuradoria da Fazenda e da Receita Federal. Depois ainda foi simplificada sua forma, passando a constar em seu conteúdo a comprovação dos débitos com exigibilidade suspensa no Poder Judiciário, não sendo mais necessária a apresentação de certidão de objeto e pé, que, como já dito, pode demorar até 15 dias para ser confeccionada. Ademais, permitiu-se a juntada de mera declaração do contribuinte, acompanhada de informações a respeito do andamento do processo para a confecção da CND.
Além disso, para grandes empresas que possuem e-CNPJ, abriu-se a possibilidade de consulta pela internet da sua conta corrente, para verificar, de forma mais rápida, quais os impedimentos para a emissão de certidão. Vale ressaltar que, antes disso, já era possível entrar no site da Receita Federal para tentar retirar a sua certidão. Isto facilitou bastante o processo e reduziu intensamente as demandas, mas não superou todas as dificuldades ligadas à certidão de dívida ativa, cuja emissão continua, de certa forma, trazendo problemas para quem lida no direito tributário.
Numa primeira leitura do artigo 207 do CTN, intimamente relacionado ao tema dessa palestra, verifica-se o que poderia parecer, à primeira vista, uma grande solução para os problemas de CND. Este dispositivo estabelece que: independentemente de disposição legal permissiva, será dispensada a prova de quitação de tributos, ou o seu suprimento, quando se tratar de prática de ato indispensável para evitar a caducidade do direito, respondendo, porém, todos os participantes no ato pelo tributo porventura devido e demais encargos. Ou seja, diante da iminência de uma circunstância onde o indivíduo pode perder um direito, como nos casos ora tratados – impossibilidade de participação em certames licitatórios, fechamento de contratos, obtenção de financiamentos – seria possível, em princípio, diante de um sujeito que se responsabiliza e para evitar que ele sofra algum dano a direito, a emissão de certidão. A caducidade do direito envolveria, a meu ver, certames licitatórios, contratos que teriam que ser renovados e outro sem número de situações.
Acontece que a parte final desse dispositivo diz o seguinte: todos participantes do ato são responsáveis pelo tributo devido, ou seja, não só aquele que declara, mas também aquele que aceita a declaração. Então, diante disso, o agente público, como gestor da coisa pública, tende a não aceitar nada que não seja a própria certidão negativa de débito ou positiva com efeitos de negativa. Daí surge a necessidade de ir ao Poder Judiciário. Em muitas circunstâncias isso é até mesmo recomendado pelos próprios agentes da Receita.
Em primeiro lugar, num mandado de segurança é necessário demonstrar o seu direito líquido e certo à obtenção de uma certidão negativa ou positiva com efeito de negativa. Para conseguir o provimento liminar, é necessário demonstrar que todos os créditos ou estão extintos ou estão com legitimidade suspensa. A própria liminar pode suspender a exigibilidade do crédito no caso em que ele está sendo objeto de contestação ou qualquer outro tipo de discussão onde sua liquidez não está ali devidamente configurada.
Acontece que, como se pode perceber de simples análise jurisprudencial, é muito difícil suspender a exigibilidade do crédito com uma liminar pura e simples, sem a contrapartida de um depósito em dinheiro, no valor do débito. O que tem sido possível é a apresentação de carta de fiança ou oferecimento de bens, embora essas situações não estejam incluídas entre aquelas circunstâncias que legalmente asseguram a suspensão da exigibilidade do crédito.
Mas outros benefícios também têm sido assegurados: há decisões do STJ no sentido de que débitos ínfimos não podem impedir a concessão da medida liminar. Outro argumento, utilizado em momento anterior à unificação do INSS e da Receita Federal: estabelecimentos deveriam ser analisados de maneira autônoma, de forma que, se eu tenho uma rede de escolas, cada uma das escolas deve ter a sua regularidade fiscal aferida de forma independente, tendo em vista que ela tem um CNPJ autônomo. Ela deve ser considerada uma pessoa jurídica autônoma para fins de comprovação de regularidade das suas obrigações.
Outro argumento que, em algumas circunstâncias, vi ser aplicado, é no sentido de que não é possível o indeferimento de uma CND por valores que não comprometam a saúde financeira da empresa. Em casos como esse, o indeferimento da CND implicaria impedimento do exercício regular da atividade econômica, o que violaria o texto constitucional. Em algumas circunstâncias o Superior Tribunal de Justiça se manifestou favoravelmente a este entendimento.
E, por último, vale ressaltar a seguinte situação: um dos requisitos para transferência de bens imóveis ou até operações de fusão, cisão e aquisição é a apresentação de uma CND. Entretanto, especificamente em relação à transferência de imóveis o Novo Código Civil não exige a CND. Por conta disso, existem manifestações em 1ª instância e no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que permitem a transferência de bens imóveis independente de existir CND ou não.
Ainda gostaria de comentar com os senhores o seguinte: nos países de primeiro mundo não existe nada comparado a uma CND. França, Inglaterra, EUA, Alemanha não têm; a Espanha tem algo que se assemelha um pouco, mas que não traz o grau de embaraço que a CND acarreta no Brasil; Portugal tem algo também muito mais simples. A China utiliza a CND apenas para evitar remessas para o exterior de recursos por parte de investidores que não mantenham recursos no país suficientes para satisfazer suas obrigações e a Índia, depois da última reforma tendente a desburocratizar o sistema tributário indiano, fez com que a importância da CND fosse sensivelmente reduzida. Outros países latinos, como a Argentina e o Chile, não têm CND, o que nos leva à grande pergunta levantada pela primeira vez neste seminário: para que serviria a CND? O que justifica a exigência de CND com requisito para celebrar um negócio, levando em consideração que existem outros meios muito mais eficazes para saber se uma empresa tem ou não saúde financeira?
Eu me lembro de João Mangabeira quando dizia que no absurdo o Brasil tem um precedente. Está na hora de nós deixarmos de ter esse precedente e aproveitar de maneira mais intensa o momento que estamos vivendo, de crescimento e desenvolvimento econômico.
Seriam estes os pontos a serem tratados. Muito obrigado.
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